terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Diálogos

Motivação espírita, inspiração budista

No último texto, pudemos apreender mais uma lição do Educador de Almas francês que se notabilizou sob o pseudônimo de Allan Kardec. De pluralidade, interdisciplinaridade e disposição para aprender com as diferenças. A lição do codificador da doutrina espírita, por sua vez, nos remeteu a outra, extremamente semelhante, só que bem mais antiga.

É ela que inaugura uma nova seção no blog Espírito de Arte, intitulada Diálogos. A partir de agora, este espaço virtual vai abrigar também reflexões e obras de arte baseadas no diálogo entre o conhecimento espírita e outras tradições espirituais.

O poema que se segue abaixo é uma adaptação em versos da lição sobre A Preservação da Verdade contida na sutta (algo como "capítulo") 95, do Majjhima Nikaya, segunda coleção de discursos atribuídos a Sidarta Gautama que compõem as Escrituras budistas. Um ensinamento universal, acima de tudo, mas que converge excepcionalmente para a disposição de espírito daquele que se propõe a vivenciar a proposta espírita.

Vagava Buda, por Kosala, um dia,
Seguido por quinhentos aprendizes
Até que achou num vilarejo o Bosque
Dos Devas, os Espíritos felizes.

Parou ali, sem grandes pretensões
E viu chegarem sacerdotes brâmanes,
Que logo se sentaram a conversar
Em busca de aprender o Dharma Búdico

Um deles, bem mais jovem que os demais,
Chamou de pronto a atenção do Buda.
De olhar no Mestre, Kaphatika expôs,
Acerca da Verdade, sua dúvida:

"Se, conhecendo mantras e Escrituras,
Os brâmanes julgassem ter achado
Maior Verdade que a do mundo inteiro,
O que dirias tu, Iluminado?"

"Acaso já encontraste, Kaphatika,
Um brâmane ou Mestre que julgasse
A fé que tem melhor que as outras todas
E a tudo diferente desprezasse?

"Se assim houvesse ao menos um, te digo,
Seria ele como um cego em fila
Ao lado de outros cegos, convencidos
De verem tudo aquilo que cintila

"E digo mais: se alguém, por fé, idéias,
Razão, por tradição ou por vontade,
Julgasse possuir a Luz inteira,
Esse alguém faltaria com a Verdade"

"Explica, então: o que esperar do sábio,
De nobre pensamento e mente clara,
Em busca da Verdade, quando queira,
Em vez de suprimi-la, preservá-la?"

"Escuta, pois, o que te digo agora:
Aquele que tem fé no que acredita
E guarda convicção na fé que tem
Mas a ninguém, por isso, infelicita,

"Nem julga-se mais certo que os demais,
Nem vê no diferente a falsidade,
Respondo a ti, ó, Kaphatika, é este,
E este só quem preserva A Verdade."

domingo, 7 de fevereiro de 2010

A curiosa biblioteca espírita de Kardec


Algumas semanas atrás, tivemos oportunidade de retomar o rastro de uma obra há muito esquecida. Por nós e por quase todos os espíritas do mundo. Ou você já ouviu falar do Catálogo racional: obras para se fundar uma Biblioteca Espírita, último livro escrito e publicado por ninguém mais, ninguém menos, que Allan Kardec?

Certamente, não se trata de uma "obra básica" equiparável em importância a O Livro dos Espíritos ou ao Evangelho segundo o Espiritismo. Contudo, em algumas dezenas de páginas, é possível apreender lições valiosas. Nelas, Kardec nos traz exemplos concretos de como entendia a relação a ser estabelecida entre o espiritismo e a cultura geral.

E revela a cada página uma visão incrivelmente aberta, plural e rara de se encontrar hoje em dia entre nós. Dizemos "nós" porque também fomos surpreendidos com a indicação de textos teatrais, partituras musicais, obras materialistas, niilistas, anti-espíritas, espiritólicas e até dos controversos Quatro Evangelhos de J.B. Roustaing...

A primeira seção do Catálogo é curta e sem surpresas. Ela é dedicada às obras fundamentais da doutrina - aquelas escritas por Kardec. Toda a Codificação, mais O que é o espiritismo?, Revista Espírita, O caráter da revelação espírita, Viagem espírita em 1862 e O espiritismo na sua expressão mais simples estão indicadas ali.

A segunda, bem mais extensa, guarda as primeiras indicações inusitadas. Ela reúne obras escritas sob influência do espiritismo, umas mediúnicas, outras não, que Kardec julgava "complementares da doutrina", em suas próprias palavras. Umas das primeiras sugestões é a do livro Revelações de além-túmulo, compilado por Henry Dozon, a partir de evocações que fazia por intermédio da esposa. Na foto abaixo, pode-se ler a descrição que o codificador faz da obra.

É ou não é o que hoje chamaríamos de um texto espiritólico, essa categoria desprezada tão frequentemente hoje por alguns companheiros espíritas?! Mas essa é só pra esquentar... Logo à frente vem Estudos e sessões espíritas, organizado por um "doutor Houat", que traz tão somente instruções sobre homeopatia obtidas mediunicamente. Detalhe: nada de psicografia. O doutor passou um ano realizando sessões de tiptologia, aquele velho toc toc na mesa a indicar letras e números, para compor a obra... Um sujeito paciente, sem dúvida!

A seguir... O próprio, quase inominável para alguns: Roustaing e seus Evangelhos (Os quatro), seguidos dos mandamentos, explicados em espírito e em verdade pelos evangelistas, como se vê abaixo:

A despeito da ressalva e da indicação de leitura do artigo de A Gênese que refuta a teoria do corpo fluídico, Kardec não deixa de indicar a obra. Provavelmente por julgar que ela tem uma contribuição a oferecer, independente do ponto duvidoso que defende. Mais ou menos como o livro Dos Espíritos e de suas Manifestações Fluídicas, de Jules de Mirville, obra que antecedeu O Livro dos Espíritos na defesa da explicação espiritual para as mesas girantes... Só que atribuindo tudo ao Capeta e seus companheiros. A explicação que Kardec dá abaixo resume a postura que o movia, centrada no fundo, mais que na forma, e alheia a preciosismos.

Ainda nesta seção, o codificador dedica capítulos exclusivos à poesia e à música. Encontramos ali a indicação de três precursores do Parnaso de Além-Túmulo, como se vê na foto.

Só que a parte mais interessante fica na seção musical. Ao lado de duas partituras mediúnicas, atribuídas respectivamente aos Espírito de Bach e Mozart, temos duas partituras compostas por espíritas, intituladas Cantata Espírita, com acompanhamento para piano, Herczka e Toussaint, eRecordação Espírita, capricho noturno para piano por C. Constant. Peças que podem ser consideradas genuinamente como as duas primeiras composições musicais espíritas feitas na história! Infelizmente, não nos chegaram as partituras propriamente ditas...

A seguir, vem a terceira sessão, Obras Realizadas Fora do Espiritismo, por meio da qual Kardec mostra um pouco mais de sua abertura para o mundo. São cerca de cem obras históricas, filosóficas e científicas, além de romances e textos teatrais, totalmente independentes do espiritismo, mas que apresentam uma boa possibilidade de diálogo com a doutrina.

Destacamos A Bíblia na Índia, de Louis Jacolliot, que versa sobre as relações entre cristianismo e hinduísmo; Buda e sua religião e Maomé e o Alcorão, ambos de Barthélémy Saint-Hilare, focados respectivamente nos ensinamentos budistas e muçulmanos; O Protestantismo Liberal, do pastor Bost; e Viagens à China, do missionário vicentino Evariste Huc.

E em meio aos infindáveis debates sobre se tal romance é ou não espírita, se é "real" ou "fantasioso" e se merece ou não figurar em livrarias espíritas, vejamos o que disse Kardec antes de indicar obras de George Sand, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Alexandre Dumas e Balzac:

Acho que o recado de tolerância e foco nas contribuições positivas, para além das diferenças aumentadas à base de lupa e microscópio, não poderia ser mais claro...

Por fim, chegamos à última e mais inesperada de todas as seções, intitulada Obras contra o Espiritismo. Já imaginou uma biblioteca espírita moderna, oferecendo ao público Deus, um delírio, de Richard Dawkins ou O mundo assombrado por demônios, de Carl Sagan?!

Pois Kardec não só estimulava a presença de obras desse náipe em sua biblioteca espírita, como explicava em alto e bom tom o porquê:

Proibir um livro é dar mostras de que o tememos. O Espiritismo, longe de temer a divulgação dos escritos publicados contra ele e interditar a sua leitura aos adeptos, chama a atenção destes e do público para tais obras, a fim de que possam julgar por comparação.

É, ainda há um longo caminho pela frente até que consigamos nos equiparar a essa mentalidade aberta, tolerante e cooperativa... De 140 anos atrás! E àquela de quase dois mil anos, então...? Deixa pra lá...