Algumas semanas atrás, tivemos oportunidade de retomar o rastro de uma obra há muito esquecida. Por nós e por quase todos os espíritas do mundo. Ou você já ouviu falar do Catálogo racional: obras para se fundar uma Biblioteca Espírita, último livro escrito e publicado por ninguém mais, ninguém menos, que Allan Kardec?
Certamente, não se trata de uma "obra básica" equiparável em importância a O Livro dos Espíritos ou ao Evangelho segundo o Espiritismo. Contudo, em algumas dezenas de páginas, é possível apreender lições valiosas. Nelas, Kardec nos traz exemplos concretos de como entendia a relação a ser estabelecida entre o espiritismo e a cultura geral.
E revela a cada página uma visão incrivelmente aberta, plural e rara de se encontrar hoje em dia entre nós. Dizemos "nós" porque também fomos surpreendidos com a indicação de textos teatrais, partituras musicais, obras materialistas, niilistas, anti-espíritas, espiritólicas e até dos controversos Quatro Evangelhos de J.B. Roustaing...
A primeira seção do Catálogo é curta e sem surpresas. Ela é dedicada às obras fundamentais da doutrina - aquelas escritas por Kardec. Toda a Codificação, mais O que é o espiritismo?, Revista Espírita, O caráter da revelação espírita, Viagem espírita em 1862 e O espiritismo na sua expressão mais simples estão indicadas ali.
A segunda, bem mais extensa, guarda as primeiras indicações inusitadas. Ela reúne obras escritas sob influência do espiritismo, umas mediúnicas, outras não, que Kardec julgava "complementares da doutrina", em suas próprias palavras. Umas das primeiras sugestões é a do livro Revelações de além-túmulo, compilado por Henry Dozon, a partir de evocações que fazia por intermédio da esposa. Na foto abaixo, pode-se ler a descrição que o codificador faz da obra.
É ou não é o que hoje chamaríamos de um texto espiritólico, essa categoria desprezada tão frequentemente hoje por alguns companheiros espíritas?! Mas essa é só pra esquentar... Logo à frente vem Estudos e sessões espíritas, organizado por um "doutor Houat", que traz tão somente instruções sobre homeopatia obtidas mediunicamente. Detalhe: nada de psicografia. O doutor passou um ano realizando sessões de tiptologia, aquele velho toc toc na mesa a indicar letras e números, para compor a obra... Um sujeito paciente, sem dúvida!
A seguir... O próprio, quase inominável para alguns: Roustaing e seus Evangelhos (Os quatro), seguidos dos mandamentos, explicados em espírito e em verdade pelos evangelistas, como se vê abaixo:
A despeito da ressalva e da indicação de leitura do artigo de A Gênese que refuta a teoria do corpo fluídico, Kardec não deixa de indicar a obra. Provavelmente por julgar que ela tem uma contribuição a oferecer, independente do ponto duvidoso que defende. Mais ou menos como o livro Dos Espíritos e de suas Manifestações Fluídicas, de Jules de Mirville, obra que antecedeu O Livro dos Espíritos na defesa da explicação espiritual para as mesas girantes... Só que atribuindo tudo ao Capeta e seus companheiros. A explicação que Kardec dá abaixo resume a postura que o movia, centrada no fundo, mais que na forma, e alheia a preciosismos.
Ainda nesta seção, o codificador dedica capítulos exclusivos à poesia e à música. Encontramos ali a indicação de três precursores do Parnaso de Além-Túmulo, como se vê na foto.
Só que a parte mais interessante fica na seção musical. Ao lado de duas partituras mediúnicas, atribuídas respectivamente aos Espírito de Bach e Mozart, temos duas partituras compostas por espíritas, intituladas Cantata Espírita, com acompanhamento para piano, Herczka e Toussaint, eRecordação Espírita, capricho noturno para piano por C. Constant. Peças que podem ser consideradas genuinamente como as duas primeiras composições musicais espíritas feitas na história! Infelizmente, não nos chegaram as partituras propriamente ditas...
A seguir, vem a terceira sessão, Obras Realizadas Fora do Espiritismo, por meio da qual Kardec mostra um pouco mais de sua abertura para o mundo. São cerca de cem obras históricas, filosóficas e científicas, além de romances e textos teatrais, totalmente independentes do espiritismo, mas que apresentam uma boa possibilidade de diálogo com a doutrina.
Destacamos A Bíblia na Índia, de Louis Jacolliot, que versa sobre as relações entre cristianismo e hinduísmo; Buda e sua religião e Maomé e o Alcorão, ambos de Barthélémy Saint-Hilare, focados respectivamente nos ensinamentos budistas e muçulmanos; O Protestantismo Liberal, do pastor Bost; e Viagens à China, do missionário vicentino Evariste Huc.
E em meio aos infindáveis debates sobre se tal romance é ou não espírita, se é "real" ou "fantasioso" e se merece ou não figurar em livrarias espíritas, vejamos o que disse Kardec antes de indicar obras de George Sand, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Alexandre Dumas e Balzac:
Acho que o recado de tolerância e foco nas contribuições positivas, para além das diferenças aumentadas à base de lupa e microscópio, não poderia ser mais claro...
Por fim, chegamos à última e mais inesperada de todas as seções, intitulada Obras contra o Espiritismo. Já imaginou uma biblioteca espírita moderna, oferecendo ao público Deus, um delírio, de Richard Dawkins ou O mundo assombrado por demônios, de Carl Sagan?!
Pois Kardec não só estimulava a presença de obras desse náipe em sua biblioteca espírita, como explicava em alto e bom tom o porquê:
Proibir um livro é dar mostras de que o tememos. O Espiritismo, longe de temer a divulgação dos escritos publicados contra ele e interditar a sua leitura aos adeptos, chama a atenção destes e do público para tais obras, a fim de que possam julgar por comparação.
É, ainda há um longo caminho pela frente até que consigamos nos equiparar a essa mentalidade aberta, tolerante e cooperativa... De 140 anos atrás! E àquela de quase dois mil anos, então...? Deixa pra lá...
10 comentários:
Eu acho que a grande maioria das pessoas que vez ou outra fazem criticas a este ou aquele livro, não é na intenção de proibir.
A intenção é de apontar o que é uma obra que pode ser considerada espirita, espiritualista e esotérica.
O problema é que os espiritualistas ficam melindrados achando que queremos proibir tal leitura na verdade usam de má fé para se defender.
Muito boa a ideia desse artigo.
É essa noção de senso crítico que falta não só no movimento espirita e não só nos movimentos religiosos, mas na sociedade inteira.
Existe remédio mais eficaz contra o fanatismo do que a leitura crítica?
Caros amigo e irmão Romário, fico impressionado com essa sua capacidade investigativa dentro do universo espírita.
Que grande contribuição essa pequena matéria nos trás, digo por mim pelo menos, já que o tema em questão foi de grandes controvérsias no movimento espírita cearense quando um determinado grupoe spírita local começou a comercializar obras similares as que Kardec propõe nessa obra, que descoheia completamente.
Fico impressionado o quanto muito mais que essa obra, desconhecemos Kardec, seus pensamentos, sua essência. e ainda saimos a falar em nome dele para apontar falhas em instituições e pessoas.
Estou feliz por essa descoberta pois me trouxe mais um elemento para discutir Espiritismo sob a ótica de Kardec e não dos espíritas.
Há, onde você encontrou essa obra? Parabéns!
Reginauro Sousa- Lema- Ceará
Marcus Gandolfi....
Parece que descobriram a pólvora, ou a roda, espírita, rsrsrs.
Todo espírita deve ler de tudo, inclusive Roustaing, Ramatís, Armond, A Bíblia, O Corão, Os Vedas, Ocho, Waldo Vieira, Wanderlei, e todos os textos possíveis, sejam "laicos", o que já torce o nariz da crentaiada, mas são também inportantes, ou religiosos, pois para que se tenha absoluta convicção da verdade que é a doutrina espírita há que compará-la com o que não é espiritismo, como os acima citados, e olhe que a lista ficou pequena, faltou Rohden,Ermance, Baccelli, Robson Pinheiro, Ernane G Andrade, Oswaldo Polidoro, Pietro Ubaldi, e a lista vai longe......
De fato, Kardec parece ter sido um Espírito de mente aberta, plural, valorizador da diversidade e não fundamentalista. Num texto de 1862, chamado "O Espiritismo em sua expressão mais simples", ele afirma algo que muitos espíritas radicais hoje consideram absurdo:
é possível ser espírita e católico ao mesmo tempo. É possível, aliás, ser espírita-católico, espírita-budista, espírita-muçulmano...
Transcrevendo o que diz ele:
"Seu objetivo é provar, aos que negam ou duvidam, que a alma existe, que sobrevive ao corpo e experimenta após a morte as consequências do bem ou do mal que tenha feito durante a vida corporal. Ora, isso é de todas as religiões. Como crença nos espíritos, ele é igualmente de todas as religiões, assim como é de todos os povos, visto que, onde quer que haja homens, há almas ou Espíritos; que as manifestações são de todos os tempos, achando-se seus relatos em todas as religiões, sem exceção. Pode-se, portanto, ser católico, grego ou romano, protestante, judeu, muçulmano, e crer nas manifestações dos Espíritos; por conseguinte, ser espírita. A prova disso é que o Espiritismo tem aderentes em todas as seitas. Como moral é essencialmente cristão, porquanto a que ele ensina não é senão o desenvolvimento e a aplicação da do Cristo, a mais pura de todas, cuja superioridade não é contestada por ninguém, prova evidente de que ela é a Lei de Deus. Ora, a moral é para uso de todo mundo.
Independendo de qualquer forma de culto, não prescrevendo nenhum e não se ocupando com os dogmas particulares, o Espiritismo não é uma religião especial, visto que não tem sacerdotes, nem templos. Aos que lhe perguntam se fazem bem em seguir tal ou qual prática, responde: "Se credes que vossa consciência o exija, fazei-o.""
Grande abraço e parabéns pela matéria! Fantástica!
Clésio Tapety
Romário,
meu amigo, obrigada, obrigada, obrigada MESMO. Eu jamais me senti tão compreendida quanto nesta análise lúcida sobre uma pessoa que foi (e deve ser mais ainda duzentos anos depois :D) tolerante, cabeça aberta, multicultural e pesquisador metódico como o Kardec.
Clésio, OBRIGADA POR ESTA CITAÇÃO MARAVILHOSA!
Acredito mesmo que devamos ler de tudo. Kardec nos pediu que filtrassemos com a razão tudo mesmo que as obras báscias, por ele compiladas, nos trazem então por que não aproveitar da mesma forma de qualquer algo a nos acrescentar que venha de outras fontes?
Importante é perceber que ele não nos pede que sigamos tais livros ao pé da letra, o que nos leva ao comentário de um outro companheiro aqui nessa mesma postagem: devemos ler de tudo e captarmos tudo aquilo que nos for útil.
Um abraço e muito obrigado por essa matéria que nos faz mais e mais expandir nossas visões exclusivistas!
O que posso ainda argumentar, pois os amigos trouxeram já o parecer bem lógico.
Quero complementar que nao é o fato de proibir, como os amigos já disseram, mas avisar que o problema não é o que se escreve, mas sim o que as pesosas fazem do que é escrito.
Como diz Kardec, deve haver o bom senso para fazer as comparações antes de tomar como verdade, isso é resultante de uma fé cega, que nada examina.
Abraços
Roberto Mumme
concordo, mas é evidente que a maior parte das pessoas do movimento espírita não se esforçam para desenvolver senso crítico.
lêem qualquer obra que se diz espírita ou psicografia como sendo portadora de verdades indiscutíveis.
e ainda por cima são incapazes de comparar os conhecimentos para verificar se são concordantes ou não.
mas creio que essa incapacidade de comparar vem do completo ou quase completo desconhecimento das obras básicas.
assim não há nada a se comparar, mas apenas algo a se aceitar ou não ao seu gosto.
abraço a todos.
deixemos claro: Kardec não endossou as anedotas de roustaing. ele refutou tudo na revista espirita e ele tambem faz ressalvas nesse texto indicando a leitura do subtitulo
: desaparecimento do corpo de Jesus, em "A Genese". esse subtitulo foi mutilado com a exclusão, em sua tradução para o portugues do item 67 do original frances, e o item 68 dele, virou 67 no portugues. KARDEC NÃO APÓIA ROUSTAING DE FORMA ALGUMA NEM ONTEM,NEM HOJE, NEM NUNCA.
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