Artigo Golpe de Vista Retrospectivo, de Allan Kardec, publicado na primeira página da Revista Espírita de janeiro de 1868.
O ano de 1867 havia sido anunciado como devendo ser particularmente proveitoso ao Espiritismo, e esta previsão realizou-se plenamente. Ele viu aparecer várias obras que, sem levar-lhe o nome, popularizam seus princípios, e entre as quais lembraremos Mirette, do Sr. Sauvage; Lê Roman de l'avenir, do Sr. Bonnemère; Dieu dans Ia nature, pelo Sr. Camille Flammarion. La Raison du Spiritisme, pelo Sr. juiz de instrução Bonnamy, é um acontecimento nos anais da Doutrina, porque sua bandeira é altamente e corajosamente arvorada porum homem cujo nome, justamente estimado e considerado, é uma autoridade, ao mesmo tempo que sua obra é um protesto contra os epítetos dos quais a crítica gratifica geralmente os adeptos da idéia. Os Espíritas têm todos apreciados esse livro como o merece, e lhe compreenderam a importância. É uma resposta peremptória a certos ataques; também pensamos que eles considerarão como um dever propagá-lo no in-teresse da Doutrina.
Não tivesse o ano somente esses resultados, seria preciso felicitá-lo; mas produziu mais de efetivos. O número das sociedades ou grupos oficialmente conhecidos, é verdade, não aumentou sensivelmente; antes mesmo diminuiu em conseqüência das intrigas com a ajuda das quais procuraram miná-los, neles introduzindo elementos de dissolução; mas em contrapartida, o número das reuniões particulares ou de família cresceu numa proporção muito grande.
Além disso, é notório para todo mundo, e da própria confissão de nossos adversários, que as idéias espíritas ganharam terreno consideravelmente, assim como o constata o autor da obra da qual demos conta acima. Eles se infiltram por uma multidão de saídas; tudo a isto concorre; as coisas que, à primeira vista, ali parecem as mais estranhas, são meios com a ajuda dos quais essas idéias se fazem luz. É que o Espiritismo toca a um tão grande número de questões que é bem difícil abordar o que quer que seja sem nisso ver surgir um pensamento Espírita, de tal sorte que, mesmo nos meios refratários, essas idéias eclodem sob uma forma ou sob uma outra, como essas plantas de cores variadas que brotam através das pedras. E, como nesses meios, geralmente, rejeita-se o Espiritismo por espírito de prevenção, sem saber o que ele diz, não é surpreendente que, quando os pensamentos espíritas ali aparecem, não se os reconhece, e, então, são aclamados porque são achados bons, sem desconfiar que são do Espiritismo.
A literatura contemporânea, pequena ou grande, séria ou leviana, semeia essas idéias em profusão; ela está delas matizada, e não lhe falta absolutamente senão o nome. Se se reunissem todos os pensamentos espíritas que correm o mundo, se constituiria o Espiritismo completo. Ora, aí está um fato considerável, e um dos mais característicos do ano que acaba de se escoar. Ele prova que todos possuem dele, de si para si, elementos no estado de intuição, e que, entre seus antagonistas e ele, o mais freqüentemente, não há senão uma questão de palavras. Os que o repelem, com perfeito conhecimento de causa são aqueles que têm interesse em combatê-lo.
Mas, então, como chegar a fazê-lo conhecer para triunfar dessas prevenções? Isto é obra do tempo. É preciso que as circunstâncias o conduzam naturalmente, e pode-se con-tar para isto com os Espíritos que sabem fazê-las nascer em tempo oportuno. Estas circunstâncias são particulares ou gerais; as primeiras agem sobre os indivíduos e as outras sobre as massas. As últimas, pela sua repercussão, fazem o efeito de minas que, a cada explosão, levantam alguns fragmentos do rochedo.
Que cada Espírita trabalhe de seu lado, sem se desencorajar pela pouca importância do resultado obtido individualmente, e pense que à força de acumular grãos de areia forma-se uma montanha.
Entre os fatos materiais que assinalaram esse ano, as curas do zuavo Jacob estão em primeiro lugar; elas fizeram uma ressonância que todo o mundo conhece; e, se bem que o Espiritismo ali não haja figurado senão incidentemente, a atenção geral por isso não foi menos vivamente chamada sobre um fenômeno dos mais sérios e que a ele se liga de maneira direta. Esses fatos, se produzindo em condições vulgares, sem aparelho místico, não por um único indivíduo mas por vários, têm, por isto mesmo, perdido o caráter miraculoso que se lhes atribuía até então; eles reentraram, como tantos outros no domínio dos fenômenos naturais. Entre aqueles que os rejeitam como milagres, muitos se tornaram menos absolutos na negação do fato, e lhe admitiram a possibilidade como resultado de uma lei da Natureza desconhecida; era um primeiro passo num caminho fecundo em conseqüências, e mais de um céptico foi abalado. Certamente, todo o mundo não foi convencido, mas isto fez muito falar; disso resultou, num grande número, uma impressão profunda que fez refletir mais do que se crê; são sementes que, se não dão uma abundante colheita imediata, não estão perdidas para o futuro.
O Sr. Jacob se mantém sempre à parte de maneira absoluta; ignoramos os motivos de sua abstenção e se deve ou não retomar o curso de suas sessões. Se há intermitência em sua faculdade, como ocorre freqüentemente em semelhante caso, isto seria uma prova de que ela não se prende exclusivamente à sua pessoa, e que, fora do indivíduo, há alguma coisa, uma vontade independente.
Mas, dir-se-á, por que essa suspensão, deste o instante em que a produção desses fenômenos era uma vantagem para a Doutrina? Tendo as coisas sendo conduzidas até aqui com uma sabedoria que não se desmentiu, é preciso supor que aqueles que dirigem o movimento julgaram o efeito suficiente para o momento, e que era útil dar um tempo de parada à efervescência; mas a idéia foi lançada, e pode-se estar certo de que ela não permanecerá no estado de letra morta.
Em suma, como se vê, o ano foi bom para o Espiritismo; suas falanges recrutaram homens sérios, cuja opinião é tida por alguma coisa em um certo mundo. Nossa correspondência nos assinala, de quase toda parte, um movimento geral de opinião para essas idéias, e, coisa bizarra neste século positivo, as que ganham mais terreno são as idéias filosóficas, bem mais do que os fatos materiais de manifestação que muitas pessoas se obstinam ainda em rejeitar. De sorte que, diante da maioria, o melhor meio de fazer proselitismo é começar pela filosofia, e isto se compreende. As idéias fundamentais sendo latentes em sua maioria, basta despertá-las; são compreendidas porque possuem seus germes em si, ao passo que os fatos, para serem aceitos e compreendidos, pedem um estudo e observações que muitos não querem se dar ao trabalho de fazer.
Depois o charlatanismo, que se apoderou dos fatos para explorá-los em seu proveito, desacreditou-os na opinião de certas pessoas expondo-os à crítica; isto não podia ser assim com a filosofia que não era tão fácil de arremedar, e que, alias, não é matéria ex-plorável.
O charlatanismo, por sua natureza, é agitador e intrigante, sem isto não seria charlatanismo. A crítica, que se cuida, geralmente, pouco em ir ao fundo do poço procurar a verdade, viu o charlatanismo se exibindo, e esforçou-se para a ele ligar a etiqueta do Espiritismo; daí, contra esta palavra, uma prevenção que se apaga à medida que o Espiri-tismo verdadeiro é melhor conhecido, porque não há ninguém, que tendo-o estudado seriamente, o confunda com o Espiritismo grotesco de fantasia, que a negligência ou a malevolência procuram a aquele substituir. Foi uma reação nesse sentido que se manifestou nestes últimos tempos.
Os princípios que se acreditam com mais facilidade são os da pluralidade dos mundos habitados e da pluralidade das existências, ou reencarnação; o primeiro pode ser considerado como admitido sem contestação pela ciência e pelo assentimento unânime, mesmo no campo materialista; o segundo está no estado de intuição em uma multidão de indivíduos em que é uma crença inata; encontra numerosas simpatias, como princípio racional de filosofia, fora mesmo do Espiritismo. É uma idéia que sorri a muitos incrédulos, porque nela encontram imediatamente a solução das dificuldades que os tinham levado à dúvida. Assim esta crença tende, cada vez mais, a se vulgarizar. Mas para quem reflete, esses dois princípios têm conseqüências forcadas que conduzem em linha direta ao Espiritismo. Pode-se, pois, considerar o progresso dessas idéias como um primeiro passo pa-ra a Doutrina, uma vez que elas lhe são partes integrantes. A imprensa que sofre, sem dúvida, com o seu desconhecimento, a influência da difusão das idéias espíritas, porque estas penetram até em seu seio, se abstém em geral, senão por simpatia, pelo menos por prudência; não é quase mais de bom gosto falar dos Davenport. Dir-se-ia mesmo que ela afeta de evitar a questão do Espiritismo; se, de tempo a outro, lança algumas piadas contra seus adeptos, são como as últimas espoletas de um bosquete de artifício; mas não há mais esse fogo de mosqueteria de invectivas que se ouvia há dois anos apenas. Se bem que ela tenha feito quase tanto barulho do Sr. Jacob quanto dos Davenport, sua linguagem foi toda outra e há a anotar, que, em sua polêmica, o nome do Espiritismo não figurou senão muito acessoriamente.
No exame da situação, não é preciso considerar somente os grandes movimentos ostensivos, mas é preciso sobretudo levar em conta o estado íntimo da opinião e das causas que podem influenciá-la. Assim como dissemos em outra parte, observando-se atentamente o que se passa no mundo, se reconhecerá que uma multidão de fatos, em aparências estranhos ao Espiritismo, parecem vir de propósito para lhe abrir os caminhos. É no conjunto das circunstâncias que é preciso procurar os verdadeiros sinais do progres-so. Deste ponto de vista, a situação é, pois, tão satisfatória quanto se pode desejá-la. Disto é preciso concluir que a oposição está desarmada, e que as coisas vão doravante caminhar sem obstáculo? Guardemo-nos de crê-lo e de nos adormecermos numa seguran-ça enganosa. O futuro do Espiritismo está assegurado, sem contradita, e precisar-se-ia ser cego para disto duvidar; mas seus piores dias não passaram; ele não recebeu ainda o batismo que consagra todas as grandes idéias. Os Espíritos são unânimes para nos pressentir contra uma luta inevitável, mas necessária, afim de provar sua invulnerabilidade e sua força; dela sairá maior e mais forte; será então somente que conquistará seu lugar no mundo, porque aqueles que terão querido derrubá-lo terão preparado seu triunfo. Que os Espíritas sinceros e devotados se fortaleçam pela união e se confundam numa santa comunhão de pensamentos. Lembremo-nos da parábola das dez virgens e velemos para não sermos tomados de surpresa.
Aproveitemos esta circunstância para exprimir toda nossa gratidão àqueles de nos-sos irmãos espíritas que, como nos anos precedentes, por ocasião da renovação das as-sinaturas da Revista, nos dão novos testemunhos de sua afetuosa simpatia; estamos feli-zes com os testemunhos que nos dão de seu devotamento à causa sagrada que todos defendemos, e que é a da Humanidade e do progresso. Àqueles que nos dizem: cora-gem! diremos que não recuaremos jamais diante de nenhuma das necessidades de nossa posição, por duras que sejam. Que contem conosco como contamos, no dia da vitória, encontrar neles os soldados da véspera, e não os soldados do dia seguinte.
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