segunda-feira, 7 de julho de 2008

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Crônica publicada na Gazeta de Notícias, por Machado de Assis, 11 de outubro de 1885

Hão de lembrar-se da minha aventura espírita, e da promessa que fiz, de iniciar-me na nova igreja. Vão ver agora o que me aconteceu.

Fui iniciado quinta-feira, às nove horas da noite, e não conto nada do que se passou, porque jurei calá-lo, por todos os séculos dos séculos. Uma vez admitido no grêmio, preparei as malas para ir estabelecer-me em Santo Antônio de Pádua.

Claro era o meu plano. Metia-me na vila, deixava-me inspirar por potências invisíveis, predizia as coisas mais joviais ou mais melancólicas deste e do outro mundo, reunia gente, e fundava uma igreja filial. Antes de seis meses podíamos
ter ali um bom contingente.

Vejam, porém, o que me sucedeu. Era hoje que devia abalar daqui. Tudo estava pronto, malas, alma e algibeiras, quando li o código de posturas da Câmara Municipal de Santo Antônio de Pádua, que está sujeito à aprovação da Assembléia Provincial do Rio de Janeiro. Nesse código leio este ominoso artigo, o art. 113:

"Fica proibido fingir-se inspirado por potências invisíveis, ou predizer
coisas tristes ou alegres".

Caiu-me a alma aos pés. Daí a alguns minutos reli o artigo, para ver se me não enganara. Dei-o a ler ao meu criado e a dois vizinhos; todos eles leram a mesma coisa, como este acréscimo, que me escapou, que o infrator pagará de multa 50$ e terá oito dias de prisão.

Não me digam que o artigo apenas veda a simulação. Os fiscais de Santo Antônio de Pádua não podem saber quando é que a gente finge, ou é deveras inspirado. Jeremias, que lá fosse, e o seu secretário Baruch podiam dizer pérolas; iriam ambos parar à cadela porque o art. 113 não explica por onde é que se manifesta a simulação.

Desfiz tudo, as malas, a alma e as algibeiras. Peguei em mim e atirei-me à rede, com o famoso código na mão, resolvido a achar-lhe algum ponto em que lhe pegasse. Não achei nada. Ao contrário, todas as suas disposições mostram espírito precavido, delicado e justo; ao menos, é o que imagino, porque ao cabo de cinco minutos dormia a sono solto.

Acordei agora mesmo para ir jantar. Podia dizer-lhes ainda alguma coisa, mas não tenho alma para nada. Lá se foi todo o meu plano! Bárbaro código! Torturas do diabo! Aqui na Corte, a gente pode dizer, por meio de cartas de jogar, uma porção de coisas alegres ou tristes, e ainda em cima recebe dois mil-réis, ou cinco, se a notícia é excelente e a pessoa é graúda, e ninguém vai para a cadeia; ao passo que ali em uma simples vila do interior...

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