quinta-feira, 10 de julho de 2008

Conteúdo Extra

Trecho do livro A Maçã no Escuro, de Clarice Lispector (1961)

Oh, tivesse tido mais tempo, e nada precisava ser assim precipitado! pensou desolada abanando a cabeça. Poderia até ter mandado buscar alguma fazenda em Vila para cortar um vestido novo. Mas quanto tempo esse homem ficaria no sítio? E a morte? não, ela não tinha tempo, o tempo era curto, os pás­saros voando longe pareciam esperar sem pressa que ela se reunisse a eles. Eles, eles que não tinham pressa, eles que ti­nham a certeza. E que voavam esperando. Esperando que ela se reunisse àquela serena e perturbadora liberdade...

A moça, com os sapatos apertados, estremeceu com medo de si própria. Tinha medo de se purificar tanto que não pre­cisasse de mais nada. Como imaginar um ser que não precisasse de nada? era monstruoso. “Não quero progredir”, disse tei­mosa, lembrando-se da frase de um espírita que queria muito o progresso. Mas que sobraria dela, com o despojamento do pro­gresso? sobraria todo um corpo, sobrariam os desejos, e tanta poeira. Que faria sua alma liberta, sem um corpo onde existir? Doeria nas janelas até que as pessoas vivas dissessem: que dia de vento. E no verão ela seria o mal-estar das noites presas dentro dos jardins.

Foi então que ali em pé, no meio das milhares de batidas despercebidas de um coração que estava tão bem ligado à própria função, soou aquela pancada mais profunda que ela conhe­cia como se conhecesse alguém: uma pancada funda e oca como se o coração pudesse rolar para um abismo. E como sempre ela se perguntou: mas seria isso doença ou vida? No meio de mil palpitações de borboleta, aquela pancada trágica... Vou ao médico, resolveu com uma avidez de gulosa, vou ao médico. O frio dentro do sol arrepiou-a.

Oh, mas mesmo assim, até agora a vida não era grave — pois ela possuía um corpo onde se queixar, ia a um coração, tinha cólicas mensais, tinha um corpo onde ela acontecia. Mas depois? depois? A moça espírita desconfiava não ser tão ape­nas um pensamento que alguém adivinharia no ar e que cha­maria, segundo ela, de inspiração. Não lhe bastaria, na liberta­ção, espreitar impaciente a madrugada para aproveitar-se sorra­teira e astuciosa dessa concretização de luz — e ser. Nem lhe bastaria olhar o céu seco durante dias na esperança de incorpo­rar-se à chuva para poder chorar. Habituara-se demais à vida, estava acostumada com certos confortos mínimos, precisava onde doer, onde sangrar se cortasse um dedo. Oh Deus, por que me escolheste para ser espírita e para compreender e saber?, pen­sou ao peso de sua vocação, sou apenas humana, não me deis tarefa acima de minhas forças. E a morte estava claramente acima de sua capacidade.

Oh, e se fosse para ser mal-assombrada — se é que espe­ravam que o fosse, e ela não sabia ao certo o que esperavam dela — então precisaria pelo menos de uma casa inteira, e de mais de um andar, calculou com minúcia. E que as portas se abrissem pela sua ausência de mão, que os passos soassem pela sua falta de pés — mas... mas tudo isso apenas acionado pela memória? Como seria difícil a sua memória. “Como é mesmo que eu tocava piano enquanto estava viva? mas como era mes­mo?”, se perguntaria. Tanto dinheiro gasto em professoras para terminar tocando com a angústia de um dedo só. Tendo como auditório uma possível mulher viva apavorada com as próprias imaginações?

Não, não, ela não pretendia assustar uma mulher com suas memórias difíceis. No fundo — refletiu ela com a mania de se preocupar de antemão com os detalhes — no fundo talvez se contentasse em arranjar o corpo de alguém onde ela pudesse dormir. E uma carne onde se explicar. Pois o que doeria, mais que tudo, seria a sua própria isenção. Por exemplo, lá estaria, como agora, a água do rio. Só que ela simplesmente não precisaria mais beber! assim como perturbava uma perna amputada que não precisa mais andar; ficaria ela com a função da perna mas sem a perna? Então — então lhe restaria contemplar a água. Mas seria ela os olhos ou a própria paisagem? E — e como ouvir? não seria ela própria o som? E, pouco a pouco, cada vez mais liberta, será que ela ao menos pensaria? Pois todo pensamento era filho de coisas, e ela não teria mais coisas. Estaria enfim livre...

Um comentário:

Anônimo disse...

Um notável exemplo de como poderíamos fazer um romance espírita na perspectiva da psicologia que nos enreda sobremaneira no corpo. Os mais famosos romances espíritas sempre se postam na perspectiva do plano espiritual. Clarice, na sua linha narrativa, brilhantemente inverte a lógica dessa perspectiva. Gostei!