Trechos de cunho espírita em Grande Sertão: Veredas (18ª edição, Editora Nova Fronteira, 1984)
Compadre meu Quelemém descreve que o que revela efeito são os baixos espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e com ânsias de se travarem com os viventes – dão encosto. Compadre meu Quelemém é quem muito me consola – Quelemém de Góis. Mas ele tem de morar longe daqui, na Jijujã, Vereda do Buriti Pardo... Arres, me deixe lá, que – em endemoninhamento ou com encosto – o senhor mesmo há de ter conhecido diversos, homens e mulheres. Pois não sim? Por mim. Tantos vi, que aprendi. Rincha-Mãe, Sangue-d´Outro o Muitos-Beiços, o Rasga-em-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... o Hermógenes... Deles, punhadão. Se eu pudesse esquecer tantos nomes... Não sou amansador de cavalos! E, mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do demônio. Será não? Será? (p. 9)
Compadre meu Quelemém reprovou minhas incertezas. Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados, da massa e peça do pai, demônios do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o que acha? E o velhinho assassinado? – eu sei que o senhor vai discutir. Pois, também. Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no corpo, por pagar. Se a gente – conforme compadre meu Quelemém é quem diz – se a gente torna a encarnar renovado, eu cismo até que o inimigo de morte pode vir como filho do inimigo. Mire veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó vizinho daqui mais seis léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele, sempre sido bons, de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtêi – nome moderno, é o que o povo daqui agora aprecêia, o senhor sabe. Pois essezinho, essezim, desde que algum entendimento alumiou, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou criaçãozinha pequena que pega; uma vez encontrou uma crioula benta-bêbada dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou em três pontos a popa da perna dela. O que esse menino bebeja vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco. – “Eu gosto de matar...” – uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça – o vôo já está pronto! Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e mastro – botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do sangue, com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino já rebaixou magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, entisicou, o tempo todo tosse, tossura da que puxa secos peitos. Arre, que agora visível, o Pindó e a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão – como regulam as sovas em horas certas confortáveis, até chamam gente para ver o exemplo bom. Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega para a quaresma que vem... Uê-Uê, então?! Não sendo como compadre meu Quelemém quer, que explicação é que o senhor dava? Aquele menino tinha sido homem. Devia, em balanço, terríveis perversidades. Alma dele estava no breu. Mostrava. E, agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está chorando e penado, ele sofre igual fosse um menino bonzinho... Ave, vi de tudo, neste mundo! Já vi até cavalo com soluço... – o que é a coisa mais custosa que há. (p. 12)
Eu gosto muito de moral. Raciocinar, exortar os outros para o bom caminho, aconselhar a justo. Minha mulher, que o senhor sabe, zela por mim: muita reza. Ela é uma abençoável. Compadre meu Quelemém sempre diz que eu posso aquietar meu temer de consciência, que sendo bem-assistido, terríveis bons espíritos me protegem. Ipê! Com gosto... Como é de são efeito, ajudo com meu querer acreditar. Mas nem sempre posso. O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. (p. 14)
Bom, ia falando: questão, isso que me sovaca... Ah, formei aquela pergunta, para compadre meu Quelemém. Que me respondeu: que, por perto do Céu, a gente se alimpou tanto, que todos os feios passados se exalaram de não ser – feito sem-modez de tempo de criança, más-artes. Como a gente não carece de ter remorso do que divulgou no latejo de seus pesadelos de uma noite. Assim que: tosou-se, floreou-se! Ahã. Por isso dito, é que a ida para o Céu é demorada. Eu confiro com compadre meu Quelemém, o senhor sabe: razão da crença mesma que tem – que, por todo mal, que se faz, um dia se repaga, o exato. Sujeito assim madruga três vezes, em antes de querer facilitar em qualquer minudência repreensível... Compadre meu Quelemém nunca fala vazio, não subtrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio – essa é que é a regra do rei! O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. (p. 21)
Às vezes penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até à hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: – “Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...” – ciente me respondeu. (p. 54)
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